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VERTENTES DA FICÇÃO INSÓLITA ANGOLANA

(EXCERTO)

 

JUREMA DE OLIVEIRA

Professora da Universidade Federal do Espírito Santo na área de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa, Pós-Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense – Uff, desenvolve pesquisa na área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa

 

Resumo: Depreender na literatura angolana as vertentes da ficção insólita contemporânea.

Palavras-chave: tradição, oralidade e insólito

O corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de origem e o referente do discurso. O corpo dá a medida e as dimensões do mundo (ZUMTHOR, 2000, p.90).

O presente trabalho tem por objetivo discutir as vertentes da ficção insólita angolana. Para esse estudo escolhemos as obras dos autores (…) e Fragata de Morais.

 

           … Fragata de Morais escreveu Como Iam as Velhas Saber (1983, A Seiva (1995), Jindunguices (1999), Momento de Ilusão (2000), Amor de Perdição, Antologia Panorâmica de Textos Dramáticos (2003), A Sonhar se Fez Verdade (2003), A Prece dos Mal Amados (2005), O Fantástico na Prosa Angolana (2010) e Batuque Mukongo (2011).

O século XX presenciou modificações históricas importantes no cenário mundial e em particular nos países africanos de língua portuguesa. O fenômeno violência nasce do desejo de dominação de um homem sobre todos os homens, mas, de acordo com Hannah Arendt, a violência destrói o poder, não o cria. Em contrapartida, as ações violentas fazem emergir no cenário social experiências insólitas, não habituais do ponto de vista cultural. A violência neutraliza toda e qualquer possibilidade de os homens se organizarem e viverem em harmonia e consequentemente abre espaço para o luto visível nas imagens refletidas num espelho d’água embaçado. Estes fatos constituem o móvel, os eventos sustentadores do gênero insólito:

           [...] o mundo organizado de repente se desorganiza, sobrevém então o desequilíbrio e as personagens oprimidas passam a viver o clima do absurdo, isso então seriam as características de um ‘insólito contemporâneo’ que lida com o coletivo e a vida pública, problematizando-os (Rodrigues, 2007, p.92).

Nessa perspectiva, os eventos não ocasionais, violentos, são postos em movimento por uma língua ficcionalizada que desloca as falas de seu lugar habitual, dando nova roupagem à ideia de apagamento, de censura promovida pelo discurso oficial, e abrem espaço à circulação da heterogeneidade identitária e discursiva, numa demanda múltipla dos eventos insólitos que rondam as experiências humanas diárias dos “pontos-sujeitos”, a base da ficção de Boaventura Cardoso para quem o personagem tem sempre um movimento especial, insólito. Sendo assim, em “A árvore que tinha batucada” do livro A morte do velho Kipacaça, o elemento de destaque é a árvore:

 

Para Carpentier, o maravilhoso constitui-se na modificação da realidade. Assim, a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé, uma crença. Os que não acreditam em santos não podem curar-se com milagres de santos:

          [...] o maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge de uma alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação inabitual ou especialmente favorecedora das inadvertidas riquezas, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com particular intensidade em virtude de uma exaltação do espírito que o conduz a um modo de ‘estado limite’ (CARPENTIER, 2009, p. 9).

A experiência inabitual de que fala Carpentier presentifica-se no mistério que envolve a árvore, mobilizando, assim, toda a comunidade. No plano maravilhoso, é comum encontrarmos expressões ou termos que remetem os fatos ocorridos ao mundo sobrenatural, sem uma explicação racional. De acordo com Todorov: “O fantástico se define como uma percepção particular de acontecimentos estranhos” (TODOROV, 2004, p. 100)…

… O maravilhoso modifica o cenário, gera um estranhamento e estabelece novas categorias para a realidade. Sendo assim, o conto “O filho” do livro Momentos de Ilusão, de Fragata de Morais, nos apresenta uma experiência inusitada que é uma gravidez de sete anos: “Há sete anos que o filho lhe remexia as entranhas. Não havia dúvida, há sete anos que a criança a apalpava por dentro, que lhe falava em silêncio penoso”. A narrativa de “O filho” se desenrola valorizando o sobrenatural e o erotismo, pois o esposo ao cumprir o ritual afetivo conduz o desfecho do conto:

          … Na sala, o marido notou a esposa a arfar em agonia no sono, sentiu-a febril ao tomar-lhe a mão. Tacteando, beijou-a com culpa insaciável, nem se lavara ao sair da amante. Esta, grata pela carícia, levou-lhe a mão ao ventre e puxou-o a si, ardendo não de febre, mas de desejo. Penetrou com a língua sedosa o bacio da orelha do esposo e vasculhou-lhe os putrefactos segredos da alma.

A vontade renascida entumeceu-lhe as calças, tentou ignorar.

“Que situação ridícula, não posso”.

Todavia os lábios femininos insuflaram a não mais o estertor do delírio. E quando a penetrou desvairado, sentiu a criança agarrar-lhe a força máscula, o pénis, e a levá-lo para o ventre materno no momento supremo do prazer, da agonia, no explodir tumultuoso do plasma. (...)

Foi, na sala de visitas espaçosa, ao lado do sofá de couro onde repousava o corpo inerte e putrefacto da companheira, que os vizinhos o encontraram sete dias mais tarde.

Do carcomido ventre da esposa saiu um sardão vermelho que desapareceu por trás do cadeirão tronco de árvore, restolhando as folhas secas das tristezas (Morais, 2000, p. 13).

          Numa perspectiva numerológica, o sete é o número místico por excelência em todas as religiões e seitas, desde as mais primitivas as mais modernas. O sete é o número da criação. É também o número que indica a relação viva entre o divino e o humano, entre o bem e o mal.

No conto “A Seiva”, da mesma obra, Fragata de Morais metaforiza a fertilização da terra, símbolo maior, e a fertilização da mulher. Os personagens centrais nutrem um amor com “raízes na inocência rural e na crueldade terrível da natureza” (Morais, 2000, p.30), pois “o relâmpago quando desvirgina o firmamento, seu grito de prazer troveja pelos ares, derrubando árvores, casas e mesmo gente. Nada se lhe opõe no caminho da fertilização da terra. Assim seria com ele”(Morais, 2000, p.30).  Essa força sobrenatural oriunda do amor era ponderada constantemente por Mbuta que:

          … Lembrava as longas conversas com Jorge sobre o que seria tradição, usos e costumes antigos, face à Bíblia, à palavra simples, mas pesada dos padres.

          Convencera-se por fim que, feitas bem as contas, seria trocar um feitiço por outro. Abandonar a crença dos antepassados para abraçar a crença do feiticeiro dos brancos que curava leprosos com um simples toque de mãos, punha paralíticos a caminhar com uma mera vontade e palavra e, coisa jamais vista na tradição dos negros, ressuscitava mortos. Pesadas bem as coisas, de facto não havia motivos para reter a crendice clânica. O que se perdesse por um lado, a Bíblia reporia por outro, era como estava escrito olho por olho, dente por dente (Morais, 2000, p.32).

         

O questionamento feito por Mbuta acerca das tradições negras e brancas nos permite ler uma similaridade nas experiências vivenciadas por ambos os grupos humanos em torno daquilo que se origina de uma revelação não habitual, mágica decorrente da fé. Um exemplo fortalecedor do maravilhoso no conto “A seiva” diz respeito ao relato de Jorge acerca do batismo de seu bisavô materno:

          … Jorge contou que seu bisavô materno, de nome Kiavulo, fora baptizado com o nome João Patrício pelo padre, por o original ser gentio. Segundo o argumento do agente de Deus na terra, agora que virara cristão, seu nome teria que ser em consonância, nada desses nomes esquisitos que ninguém sabia o que queriam dizer. Kiavulo, que desejava aprender as coisas dos brancos, enfiou-se na catequese. Algum tempo depois, entre outras informações complexas, ficou a saber que lhe era vedado comer carne às sextas-feiras. Ora um dia desses, João Patrício, como então exigia ser chamado pelos outros naturais, caçou uma lebre e preparava-se para a comer, quando a nova consciência o admoestou, por ser o fatídico dia. Mas como a fome não tem nada de cristã nem aprendeu a ler a Bíblia, João Patrício agarrou no bicho já esfolado e antes de o comer meteu-o na água do rio, fazendo o sinal da cruz sobre o mesmo.

          ‘Se Kiavulo ser agora João Patrício, tu kabulo ser agora peixe. Branco pode fazer, mim também’, sentenciou para paz de sua consciência (Morais, 2000, p.32).

 

          Num ritual que envolve preceitos e quebra de preceitos percebe-se que o imaginário das personagens está imbuído de sensações experimentadas cotidianamente, pois o real maravilhoso se mostra de um lado na religiosidade africana e, por outro lado, no catolicismo, bem como nas práticas culturas africanas diárias. No desfecho do conto depreendemos uma sucessão de fatos extraordinários:

          … Jorge Torres, atordoado pela voluptuosidade inesperada da namorada, logo se recompôs. Apertou-a com paixão e preparou-se para o amor. Com frenesi conseguiu desnudar-se.

          Quanto a Mbuta, já há algum tempo que partira da casa da lenha. Só o corpo restara, cada vez mais abraçado a Jorge.

          Sua essência descia enroscada pelo poste na clareira, ao ritmo do bater abafado das mãos e dos pés das mulheres em seus cânticos de fertilidade.

          Silenciosa, feita serpente maior do que a jiboia, foi apertando os elos pelo corpo do amado que, de olhos cerrados e arfando, gozava o amor e a entrega, sem notar que a asfixia que sentia não se devia ao êxtase do prazer fulgarante e ritmado, mas sim ao aperto premente da cobra em si enroscada.

          Quando sentiu o ar faltar-lhe por completo, no momento excruciante do orgasmo, já roxo, seus olhos esbugalhados viram a enorme cabeça da jiboia a olhá-lo, língua bifurcada silvante.

          Despedindo-se no último beijo de amor, sua cabeça tombou por fim para o lado, o corpo inanimado amassado.

          A serpente desenroscou-se e rastejou silenciosa para o mato, desaparecendo. Ao longe, os contratados tocavam seus batuques dolentes que falavam das saudades da terra e dos familiares (Morais, 2000, p.34).

 

          Nos contos de Fragata de Morais, o real maravilhoso flui livremente, pois apresenta no primeiro momento situações totalmente normais para só no futuro proporcionar ao leitor um cenário sobrenatural.

O estilo maravilhoso de que fala Carpentier no livro O reino deste mundo (CARPENTIER, 2009, p. 10) não é privilégio das Américas, mas uma herança de uma África que imprimiu suas marcas e traços históricos numa diáspora que se descobre herdeira de uma cosmogonia ainda em construção. As ações ditas insólitas, inabituais tem um arcabouço fundado por um enredo cosmogônico que se desenvolve por meio de uma elaborada estrutura simbólica como aquela percebida nas longas festas do Komba, ritual de passagem de um ente querido em Angola.

A performance experimentada pelos personagens do conto…. …bem como do ritual amoroso do conto ‘O filho”, de Fragata de Morais mostra o corpo em performance, conceito pensando por Paul Zumthor na obra Performance, recepção, leitura (2000). De acordo com o mesmo autor performance se refere de modo imediato a um acontecimento oral e gestual.

 

O conto “Desencontros” de Fragata de Morais, retrata a história do espírito de um soldado chamado Hernando de La Cuenca y Fraga. Numa perspectiva que remete a um contexto simbólico-religioso, Evaristo, o esposo, presencia a possessão da mulher Filipina:

… Uma noite, em que Evaristo teve o susto da sua vida, ao entrar no quarto deu com Filipina sentada na cama em profundo transe, olhos esbugalhados e em cheliques. Pensando presenciar um ataque de epilepsia, agarrou-a pelos ombros com o fito de a deitar, sendo violentamente sacudido por um abanão que o enviou de encontro à porta do quarto. Estatelado no chão, boca aberta de espanto, ouviu uma voz masculina rouca e profunda a sair pelos lábios da esposa (Morais, 2000, p.38).

 

Hernando de La Cuenca y Fraga retorna para cobrar um reconhecimento que não teve em vida e usa o corpo de Filipina para obter reconhecimento pelos seus feitos:

Evaristo esfregou os olhos, Filipina olhando-o fixamente e altiva. Parecia-lhe uma blasfêmia ouvir, não as palavras preferidas, mas a voz masculina e roufenha gorgolejando pela boca da esposa.

“E o que tenho eu a ver com isso?”, ouviu-se perguntar.

“A tua mulher terá que divulgar esta minha miséria. É injusto, ninguém se lembra de mim. Andei com o general Pereira de Eça a combater para o engrandecimento da pátria...”

“Minha mulher?!...”, disse, de olhos, agora mais esbugalhados.

“Sim, tua mulher!”

“Meus Deus, que pesadelo!...”, balbuciou Evaristo, esvaído de forças e vontade.

“Pesadelo é o meu. Mandume passeia-se por aqui de cavalo branco, servido por vários Lengas e a cada instante ouve seu nome ser recordado. Quanto a mim, nem a minha família sabe que existi!...”, disse Hernando (Morais, 2000, p. 39).

 

Os acontecimentos insólitos são aqueles que não ocorrem com frequência, contrários às práticas sociais diárias, logo, causam espanto, estranheza, pois destoam dos hábitos comuns dos indivíduos em suas experiências quotidianas, resultantes historicamente de um sistema de concepções herdadas, correspondentes às formas como os homens se relacionam e transmitem seu conhecimento entre uns aos outros em uma determinada cultura e em um determinado momento das distintas realidades sociais. Diante disso, “é lícito opor o insólito ao natural, e ao ordinário, termos comuns na teoria dos gêneros literários quando se quer falar de Maravilhoso, Fantástico, Estranho, Sobrenatural, Realismo Maravilhoso, Absurdo” (GARCIA, 2007, p.19). Seguindo as explicações do dicionário, podemos ampliar nossas informações acerca daquilo dito natural. Segundo ainda o dicionário, o termo “natural”, significa aquilo que segue a ordem natural das coisas, lógico, próprio do instinto, instintivo, espontâneo, enfim, o que é previsível, provável (FERREIRA, 1986, p. 1608).

O projeto literário angolano contemporâneo conta com várias correntes, uma decorrência das mudanças sociais e políticas. De acordo com Vasconcelos (2009), o período pós-independência é marcado literariamente pelos diversos e múltiplos processos de ruptura conceptual de arte com o tipo de regime e sua falência num universo de múltiplos e de intermináveis experimentalismos. Esse experimentalismo conduziu a trajetória artística dos diversos escritores angolanos. Assim, transitando entre experiências tradicionais e fatos extraordinários Boaventura Cardoso e Fragata de Morais produziram obras representativas das vertentes insólitas da literatura angolana.

Bibliografia:

CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

            CHAVES, Rita, MACÊDO, Tania & MATA, Inocência.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

GARCIA, Flavio (Org.). A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.

MORAIS, Fragata de. Batuque mukongo. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2011.

O fantástico na prosa angolana. Luanda: Mayamba, 2010.

A sonhar se fez verdade. Luanda: Inic, 2003.

 A prece dos mal amados. Porto: Campos das letras, 2005.

Momento de ilusão. Luanda: Chá de Caxinde, 2000.

Jindunguices. Luanda: Inald, 1999.

Como iam as velhas saber. Luanda: Inald, s.d..

A seiva. Luanda: Inald, s.d..

Amor de perdição. Luanda: Chá de Caxinde, s.d..

18 – RODRIGUES, Tailane. In: GARCIA, Flavio (Org.) A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.

19 – TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.

20 – ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000.

 

 

 

 

 

 

           

 

 

 

 

 

 

          

 

 

02

FRAGATA DE MORAIS, A Prece dos Mal Amados, Porto: Campo das Letras, 2005

 

Professor Doutor

José Carlos Venâncio

Universidade da Beira Interior

Centro de Estudos Sociais       

6200 COVILHÃ

jcvenancio@sapo.pt

 

 

Duas palavras a propósito …

 

Uma das características da literatura angolana, quando olhada como um todo, é o impressionante e significativo registo das muitas transformações sociais e culturais por que a colónia e depois país, enquanto sociedade de transição, tem experimentado. Vários são os autores e textos a fazerem jus a esta característica. Uanhenga Xitu, Pepetela, Arnaldo Santos, Manuel Rui e o autor em apreço nesta recensão crítica, são apenas alguns dos nomes, porventura os mais sonantes, a darem corpo a esta tendência estética da literatura angolana.

Chamo a atenção para esta mesma característica, não apenas para realçar a pujança da literatura angolana, mas, sobretudo, para evidenciar o sentido crítico, a vitalidade e a perspicácia sociológica dos seus escritores. Penso que o fim moralista e transformacional inerente ao género romanesco, decorrente dos seus antecedentes épicos e consubstanciando uma das narrativas emancipatórias de que se constituiu a modernidade ocidental, se aplica na perfeição à experiência dos romancistas angolanos. No romance, tal como Goldmann (1986) nos caracteriza o género, é normalmente narrada a história de uma procura de valores autênticos por parte de um herói individual numa sociedade degradada, que, na acepção do autor citado, tendo em conta o contexto da emergência do género, não é outra senão a sociedade capitalista, subvertida pela prevalência do valor de troca sobre os valores humanos, tidos, com toda a pertinência, como os valores autênticos. Estamos perante o que, também na tradição marxista, se designa por “mercadorização” da vida e que, em Jürgen Habermas (o filósofo alemão), é traduzido pela colonização do mundo da vida (conceito que ele foi buscar a Husserl) pelo sistema.

Perante este quadro, que é de alienação e de submissão, espera-se da capacidade performativa do género romanesco, denunciador e transformacionista, a subversão do sistema, seja ele o capitalista, seja ele o colonialista ou o que deste resta. Os romancistas angolanos, para enriquecimento da própria literatura, não têm deixado esta tarefa por mãos alheias. Assistimos, consequentemente e sem falsas modéstias, por intermédio deles à revitalização do género, impulsionados, muitas vezes, por significativos assomos de coragem. Permitam-me que evoque aqui, a este propósito, o último romance de Pepetela, Predadores (Lisboa 2005), que, numa leitura historicamente menos contextualizada, bem poderia referenciar o mundo de hoje, em que os nossos “mundos da vida” são, aparentemente sem esperança, progressivamente colonizados por uma lógica concorrencial neo-liberal.

Um dos romancistas em causa é precisamente Fragata de Morais, autor de uma obra vasta e significativa da qual, para além do presente romance, vale mencionar os seguintes títulos: A seiva (Contos angolanos Luanda: INALD 1995), Momento de ilusão (Luanda/Lisboa: Chá de Caxinde/Campo das Letras 1996), Inkuna Minha Terra (Contos 1997), que mereceu uma menção honrosa do Prémio Sonangol de Literatura, Jindunguices, Prémio Sagrada Esperança de 1999, e A sonhar se fez verdade (Contos, Luanda: INALD 2006).

De referir ainda, acerca da sua biografia, o facto de ter estudado teatro e cinema em França e na Holanda, de ter sido Vice-Ministro da Educação e Cultura e de ser embaixador de carreira do seu país.

A prece dos mal amados, o romance ora recenseado, desenvolve uma temática, a da mestiçagem ou, mais especificamente, a do lugar do mestiço (biológico, entenda-se) na sociedade angolana, que, diferentemente do que se possa pensar, não é assim tão recorrente na literatura angolana, conquanto outros escritores a desenvolvam, recordando-me, para o efeito, de Arnaldo Santos e de duas das suas mais recentes narrativas, A boneca de Quilengues (Porto 1992) e A Casa Velha das Margens (Lisboa 1999). Fragata de Morais, em A prece dos mal amados introduz, todavia, um elemento novo: as regras e a mundividência de uma sociedade tradicional em relação ao fenómeno em apreço, entendido, sobretudo por parte do guardião maior de costumes desta mesma sociedade, o soba grande Juba de Leão, como um presságio que encontra tradução na expressão (que encontramos igualmente nas vivências africanas no Novo Mundo, mais especificamente, nos rituais do Candomblé?) os filhos da cobra. Relevo, a este propósito, a coragem do romancista em representar a experiência de vida e o exercício de poderes numa sociedade tradicional, tarefa que é, geralmente, levada a cabo por antropólogos, que, munidos, entre outros instrumentos metodológicos, da chamada observação participante, acreditam, mesmo quando entregues a uma postura desconstrucionista, aproximar-se do interpretado e do descrito. Ressalto igualmente a sua coragem em assumir, numa atitude com empréstimos nacionalistas e utópicos (e estou a recordar-me doutros textos da literatura angolana votados à utopia de uma Angola que, sendo diversa, deveria ser sobretudo una), a desconstrução do mundo descrito em prol de uma Angola moderna nas suas regras e nos seus valores.

O romance está centrado no drama de Nazamba que, levada, quando criança, pelo pai para o Norte de Portugal, se viu confrontada com o que este país, em meados dos anos 70 do século passado, tinha de mais recôndito e mais conservador. Não é aceite, não se adapta e também não procura adaptar-se. Na procura de uma Heimat, no dizer de Ernst Bloch, traduzível por pátria ou mátria, regressa a Angola, ficando-se por Luanda ou, se quisermos – porque não? - pelas margens (usando a este propósito um dos sentidos possíveis que emerge do romance, já citado, de Arnaldo Santos) de uma identidade social e política que gostaria de abraçar: a angolana.

Nazamba tem, assim, um percurso de vida marcado pelo sofrimento e pela exclusão, que se deveu às intolerâncias e às ignorâncias vigentes nos mundos aos quais surge referenciada. Não nos esqueçamos, porém, que as diferenças em apreço foram objecto de aproveitamentos políticos que as conjunturas políticas e sociais de então proporcionaram e permitiram. Os mundos em causa não são, pois, excludentes entre si. São os homens que os tornam assim e o romance é claro neste desígnio.

Abstraindo-nos do contexto angolano, em função do qual o romance deve, em primeira linha, ser esteticamente avaliado e valorizado, reconhecemos que o mesmo abraça uma temática universal ou, talvez melhor, tornada universal pela presente conjuntura. Quantos de nós não vivem hoje nas margens (com o direito de não sair delas) de um mundo em desterritorialização cultural acelerada? Um mundo onde, consoante os contextos, assim nos identificamos, sempre com o direito de sermos diferentes. O mesmo direito de que se serviu Nazamba quando, interpelada pelo pai em Portugal, que lhe dizia: “Não és preta, tu és mulata”, recusou negociar o que é inegociável e simplesmente lhe respondeu: “sou preta. Nunca mais serei mulata, serei sempre preta” (p.47).

Trata-se, na verdade, de um romance que, estando escrito numa bela língua literária, desenvolve uma temática que, pela sua profundidade e actualidade, é de todos nós. Poucos serão os romances a testemunharem, com o mesmo ímpeto, a relação de amor e ódio que envolve os dois povos, as duas culturas e os dois destinos em apreço: o português e o angolano. Como se diz nas Beiras (Portugal), onde vivo, mas donde não sou originário - permitam-me o direito de ter também as minhas margens! - bem haja ao escritor pela escrita deste romance, que sendo angolano não deixa de ser universal pela temática que desenvolve em tempo de globalização e de desterritorializações culturais.

 

03

O Fantástico na Prosa Angolana  (01 / 06 / 09)

Fragata de Morais

 

Quando me veio a ideia de elaborar a presente antologia, de imediato se me colocou a grandeza e delicadeza da tarefa face à vasta gama de escritores nacionais, e sobre o que eu poderia antever como imaginário, fantástico, real e ou irreal, entre muitas outras perspectivas, numa sociedade em que as fronteiras entre o mundo visível e aquele invisivel sempre estiveram tão intimamente ligadas

Face à oralidade das sociedades africanas, da qual Angola não teria como escapar, este universo de ambiguidade não poderia deixar de ter residência visível nas diversas obras dos escritores angolanos que, ao longo dos séculos XIX e XX, foram férteis na produção de textos em que diversos mundos se interligavam com acontecimentos estranhos, acontecimentos que com muita frequência fugiam ao entendimento de serem ou não reais perante a percepção do aceitável e ou do credivel.

Óscar Ribas, um dos mais conceituados nomes da etnografia nacional, nascido em 1909 e já falecido, autor de vasta obra em que recolheu a extremamente valiosa literatura oral africana na zona de Luanda, afirmara que  os contos ordinariamente reflectem aspectos da vida real. Neles figuram as mais variadas personagens: homens, animais, monstros, divindades, almas. Se por vezes, a acção decorre entre elementos da mesma espécie, outras no entanto desenrolam-se misteriosamnete, numa participação de seres diferentes.

Confrontei-me, deste modo, com a questão do fantástico, algo que não pode ser explicado via racionalidade, e com as possibilidades do verosimil versus o inverosimil, o real e o sonho, o natural e o sobrenatural. O que procurar, o que e como inserir? Seria o fantástico, o estranho, o maravilhoso e a fantasia contidos  na panóplia de obras de escritores angolanos a mesma coisa?  Quedar-me-ia unicamente com o texto, vamos chamá-lo por contraposição adulto, ou igualmente com o tradicional, o juvenil e o infantil? Na oralidade africana,  contar, o sunguilar, é parte intrinseca da vida. É às noites, sob o agasalhar dos fogos, que as tradições, os usos e costumes são propagados de geração em geração, através dos contos, das estórias, das adivinhas, dos provérbios. Contar, relatar, gravar na memória colectiva é uma das acções mais antigas da história da humanidade, reflectidas em testemunho nas grutas espalhadas pelo mundo inteiro.

Acho que me preocupei mais com os aspectos do estranho, do maravilhoso, talvez mesmo até do insólito, na recolha que levei a cabo, deixando o fantástico maioritariamente para a literatura tradicional e para a literartura infantil, narrativas em que o narrador ou o escritor mais se preocupa com a mensagem, com a valorização moral e com um fim que transmita uma postura considerada de funcional na sociedade.

Tzvetan Todorov, um filosófo e linguista búlgaro desde 1963 a viver em Paris, no seu livro “Introdução à Literatura Fantástica”, estabelece normas a respeito do fantástico na literatura, diferenciando entre o fantástico, o estranho e o maravilhoso. Segundo ele, em um mundo que é o nosso, que conhecemos (infira-se ocidental e moderno), sem diabos, sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Quem percebe o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então essa realidade está regida por leis que desconhecemos… O fantástico ocupa o tempo dessa incerteza. Assim que se escolhe uma das duas respostas, deixa-se o terreno do fantástico para entrar em um género vizinho: o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural.

Não irei referir nesta apresentação o que me levou a incluir um e não outro escritor,  até porque a linha divisória não me permitiu estabelecer fronteiras entre o estranho, o maravilhoso  sempre existindo um subgénero transitivo entre eles. Segundo Todorov,  seja como for,não é possível excluir de uma análise do fantástico, o maravilhoso e o estranho, géneros aos quais se sobrepõe. Acho que os contos e os excertos de textos mais largos que me serviram de base, englobam-se largamente no objectivo a que me propuz.

 

Fragata de Morais

Coordenador

 

 

                                                                                                                                      

04

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